Existe uma coisa que me deixa duplamente desconfortável: a declarada valorização da busca pela paz. Digo duplamente, porque todos que conheço parecem estar sempre em busca dessa paz e todos a valorizam. Quando lhes pergunto o que é essa paz, mais do que frequentemente me descrevem cenários analgésicos, ambientes ansiolíticos e contextos que implicam em pouco ou nenhum movimento. Tudo em perfeita harmonia.
Então, me sinto desconfortável, “um”, por não conseguir sentir essa sensação tão valorizada e, “dois”, por me sentir o único ser que conheço que não sente isso. Sinto-me um verdadeiro alienígena.
Algum tempo atrás, quando os humanos ainda podiam andar livremente pelas ruas, de boca aberta para o ar, tossindo e espirrando nas caras uns dos outros, participei de um workshop sobre desenvolvimento pessoal, do qual participaram umas vinte pessoas. Ao final, a facilitadora propôs um exercício de meditação, no qual deveríamos mentalmente nos conduzir a um local preferido nosso, onde nos sentíssemos integrados, equilibrados e em paz. Desnecessário dizer que a palavra “paz” não tinha qualquer referencial claro e positivo em meu sistema límbico, portanto, me concentrei naquilo que eu tinha clareza: integração e equilíbrio. Bem, ao final do exercício, a facilitadora perguntou a cada pessoa da sala como era o lugar que escolhemos. A resposta que descreveu o lugar menos paradisíaco, calmo e natural foi o da foto que ilustra este artigo.
O destino quis que eu fosse o último a descrever seu local favorito e eu sequer refleti sobre descrever o cruzamento da Avenida Paulista com a Rua Augusta, no meio da tarde de um dia comercial, em meio ao trânsito intenso de carros e pessoas, como fiz eloquentemente. Imagine os olhares ao meu redor...
O fato é que eu valorizo o movimento, a intensidade, a diversidade, o desconforto e a dor como “chaves” únicas das portas do desenvolvimento e da evolução. Não é que eu propriamente goste do sofrimento, até porque não percebo essas coisas como sofrimento em si. Eu gosto da viagem e dos lugares aonde esse conjunto de fenômenos que chamamos pelo pseudônimo de problema costuma me levar. Sempre fui conduzido por e para lugares incríveis, quando enfrentei problemas.
Por isso, eu não busco o controle emocional, mas me esforço para aceitar minhas intensidades como expressão do verdadeiro equilíbrio (se uma extremidade desce, a outra sobe na mesma medida) e faço o possível para permitir que elas venham e vão, sem apegos; eu não corro atrás da paz, mas me atrevo a atravessar o caos, em busca de sua organização; eu mão me moldo no único perfeito, mas eu quero me integrar com o diverso, em busca da harmonia.
Fico me perguntando: “será que o grande barato da vida não é o eterno tentar desenrolá-la, ao invés do querer fugir de sua loucura?”
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OBSERVAÇÃO:
Nietsche, certa feita, teria dito que o ser humano só poderia contemplar a felicidade e a paz na arte e vivê-las na morte. Talvez por isso, identifico-me com Dionísio, aquele ser mitológico, cujo nome é a palavra grega para “êxtase”. Esse deus habita o mundo das aparências, das formas, das belezas e da justa medida, fatores artificiais e limitantes que sempre percebi como obstáculos à compreensão e à aceitação do diferente, do diverso, do disruptivo e do mutável. Para mim, o desenvolvimento vem desses fatores incômodos e não do anteriores, perfeitos. E Dionísio é precisamente o deus do caos, da desmesura, da deformidade, da noite criadora do som. Dionísio leva o ser humano para onde só há a intensidade, um mundo de emoções inconscientes, envolvendo-o em harmonia e desarmonia, consonância e dissonância, prazer e dor, construção e destruição, vida e morte.
REFERÊNCIA:
DIAS, Rosa M. Arte e vida no pensamento de Nietzsche. SciELO – Cadernos de Nietzsche, 2015. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2316-82422015000100227>. Acesso em: 29, out. 2020.
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