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  • Foto do escritorCássio C. Nogueira

Sobre raízes e sintomas da violência



A violência contra a mulher é uma questão que tem dominado minhas reflexões nas últimas quatro ou cinco semanas. De um lado, uma amiga muito querida, a Adriana Chebabi, está lançando o livro “Precisamos falar sobre relacionamentos abusivos”, que é uma coletânea de textos e relatos sobre o tema, publicados na página Belas Urbanas. De outro lado, outra amiga muito querida (cujo nome preservarei por não ter sua autorização para divulgar) sofreu um ato terrível de abuso e violência doméstica.


Da perspectiva pessoal, é difícil descrever o que sinto, pois é insignificante, frente ao que devem sentir as mulheres, e é algo muito negativo e agressivo, que permeia uma área indefinida, mas instintiva, entre a vergonha (de ser homem) e o ódio (aos homens que não respeitam as mulheres). Mas essa perspectiva emocional pouco tem a contribuir para a questão, creio.


Da perspectiva profissional, minhas reflexões já são claras, sóbrias e concatenadas.


Muito se fala na violência contra a mulher, especificamente, e há mesmo que se falar, pois é inadmissível que alguém promova qualquer tipo de deliberada violência psicológica ou física, principalmente contra alguém que se encontre em uma posição de confiança ou vulnerabilidade ou, pior, dentro da própria casa. Entretanto, as possíveis soluções para qualquer problema não serão efetivas se partirem de emoções resultantes de sintomas ou de contextos parciais, dentro do sistema que as geram.

Senão, vejamos...


De acordo com o Ministério da Saúde, em 2006, o Brasil teve 62.517 homicídios. São 30,3 mortes intencionadas para cada 100 mil habitantes, enquanto a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera suportável uma média de 10 homicídios por 100 mil habitantes. Essa média varia de acordo com a região: no Sul, a média foi 12,9; já, no Nordeste, a média foi 66,8! 71% das pessoas assassinadas eram negras ou pardas; 30,3% eram LGBTQI+; e 6% foram mulheres.


Um terço das mulheres assassinadas no Brasil foi morta só por serem mulheres! O Brasil e a Tailândia dividem a liderança na classificação da OMS de mulheres mais assediadas do planeta, onde 86% das mulheres já foram assediadas em público. O Brasil ainda foi apontado como um dos destinos mais perigosos para turistas mulheres. Mas, pior que isso, o Brasil foi listado como tendo 14 das 50 cidades mais violentas do mundo, pela mesma OMS!



Ainda que a violência contra a mulher mostre números assustadores, um número 16 vezes maior (!) de homens foi morto, no mesmo período. Tais números mostram algo bem maior que um país perigoso só para as mulheres. Embora você possa pensar que matar uma mulher só por ser mulher seja bem diferente de matar um homem por uma discussão, as mortes intencionadas de mulheres e homens provavelmente têm a mesma origem e que não é igual à motivação do momento, mas a gera. As estatísticas mostram uma sociedade que tem a violência como característica intrínseca ao comportamento social! Isso aponta que a questão não está no olhar para a mulher, como ponto de origem do problema, mas nas bases estruturais mais generalizadas da sociedade. E estamos falando apenas em homicídios, que são a “ponta do iceberg” da violência, pois há números ainda mais assustadores para as agressões morais e físicas menores e que se somam a esse cenário.


Os principais estudos apontam o álcool, as drogas ilícitas, a pobreza e o baixo nível de instrução como os fatores mais influentes nas raízes dos comportamentos violentos. Portanto, os aspectos sistêmicos que produzem esses números sugerem que concentrar recursos e esforços nesses pontos estruturais da gestão pública e da conscientização da população podem trazer resultados muito mais efetivos, sólidos, sustentáveis e abrangentes que as constantes medidas paliativas dirigidas à contenção das intenções exclusivamente contra as mulheres. Deixo claro que não excluo, aqui, a necessidade de canais e estruturas de atendimento personalizado a mulheres e ao público LGBTIQ+, pois essas são medidas de apoio às vítimas e são, de meu ponto de vista, fundamentais! Falo das medidas de contenção e combate à violência.


Um dos fatores mais influentes na luta contra a violência e o crime é um dos pontos mais vulneráveis do Brasil: a justiça (polícias despreparadas, agentes mal treinados, inteligência operacional deficiente, sistema judiciário lento e repleto de “facilidades” para o ofensor, etc.). Estudos globais sobre ações locais, em diversas cidades da América do Norte e da Europa, apontam que o fortalecimento do sistema judiciário e da polícia, tornando-os capazes de rápida e eficientemente identificar, prender, julgar, condenar e punir agressores e criminosos, reduziu significativamente os índices de violência e criminalidade, enquanto o incentivo à intensificação e aplicação da repressão violenta pelos agentes do Estado e a inclusão de penas também mais violentas acabaram por aumentar esses mesmos índices, principalmente quando o sistema judiciário era moroso e ineficiente.


O problema não é, portanto, a violência contra a mulher, mas a estrutura da sociedade, responsável por gerar a violência em si, contra todos!


Como indivíduos, nós sentimos amor, compaixão e ódio. E isso é normal e saudável! Como agentes de mudança, contudo, precisamos pensar friamente em números, fatos e conceitos a fim de melhor traçarmos estratégias que vão além de nossa percepção e no cerne dos problemas.


Não se trata de uma questão de reduzir a violência contra a mulher e, sim, de reduzir a violência em todos os seus aspectos. Trata-se de desenvolver a economia, a cultura e a educação em todas as camadas sociais, com inteligência estratégica, ao mesmo tempo em que construímos uma estrutura judiciária atenta, empática, justa, eficiente e rápida. Com cidadãos conscientes de valores sociais justos, embarcados em uma educação sólida, e temerosos da efetividade da justiça, eventualmente conteremos significativamente o impulso para atos violentos e teremos índices de violência muito mais baixos e, consequentemente, mais segurança e liberdade para todos, principalmente para as mulheres.

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CRÉDITOS:


Foto: Flickr/European Parliament/CC BY-NC-ND 2.0

Imagem: Eszter Czajkowski-Nyári/CC BY-NC-ND 4.0


REFERÊNCIAS:


ATLAS da Violência 2017 mapeia os homicídios no Brasil. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Brasília, 5 jun. 2017. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=30253&Itemid=2>. Acesso em: 10 nov. 2020.


ATLAS da Violência 2018. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Rio de Janeiro, 18 jun. 2018. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_2018.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2020.


BRASIL tem 14 das 50 cidades mais violentas do mundo. Rede Brasil Atual, São Paulo, 13 jan. 2012. Disponível em: <https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2012/01/mexico-tem-as-duas-cidades-mais-violentas-do-mundo-no-brasil-estao-14-das-50/ >. Acesso em: 10 nov. 2020.


CARELLI, Vincent. Genocídio brasileiro. São Paulo: Carta Capital, 12 jun. 2013. Disponível em: <http://web.archive.org/web/20131203002744/https://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-milanez/genocidio-brasileiro-por-vincent-carelli-1000.html/ >. Acesso em: 10 nov. 2020.


ESTATÍSTICAS. Portal do Governo do Estado de São Paulo, São Paulo, 23 ago. 2017. Disponível em: <https://www.webcitation.org/619lg4o87?url=http://www.ssp.sp.gov.br/estatistica/dados.aspx?id=E>. Acesso em: 11 nov. 2020.


MADEIRO, Carlos. Medo de ser assassinado atinge 3 em 4 brasileiros; 67% de jovens temem a PM. Nov. 2016. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2016/11/02/medo-de-ser-assassinado-atinge-3-em-4-brasileiros-67-de-jovens-temem-a-pm.htm>. Acesso em: 11 nov. 2020.


MESQUITA NETO, Paulo de; ALVES, Renato. 3.º Relatório Nacional de Direitos Humanos. São Paulo: Universidade de São Paulo, Núcleo de Estudos da Violência, 2007.

NÚMERO de assaltos no Brasil é o dobro da média mundial. Portal Terra, Porto Alegre, 5 nov. 2013. Disponível em: <https://istoe.com.br

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TOKARNIA, Tokarnia. Educação reforça desigualdades entre brancos e negros, diz estudo. Brasília: Agência Brasil, 18 nov. 2016. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-11/educacao-reforca-desigualdades-entre-brancos-e-negros-diz-estudo >. Acesso em: 11 nov. 2020.


UMA abordagem histórica sobre o crescimento do crime organizado no Brasil. Âmbito Jurídico, São Paulo, 1 jun. 2012. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-penal/uma-abordagem-historica-sobre-o-crescimento-do-crime-organizado-no-brasil/ >. Acesso em: 10 nov. 2020.

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